Adeus à hora da largada

Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis


Mas a vida
matou em mim essa mística esperança


Eu já não espero
sou aquele por quem se espera


Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida


Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos


Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura


Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

Civilização ocidental

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa


Os farrapos completam
a paisagem íntima


O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante


Depois as doze horas de trabalho
Escravo


Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra


A velhice vem cedo


Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.

Consciencialização

Medo no ar!


Em cada esquina
sentinelas vigilantes incendeiam olhares
em cada casa
se substituem apressadamente os fechos velhos
das portas
e em cada consciência
fervilha o temor de se ouvir a si mesma


A historia está a ser contada
de novo


Medo no ar!


Acontece que eu
homem humilde
ainda mais humilde na pele negra
me regresso África
para mim
com os olhos secos.

Noite

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.


Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.


São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.


Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.


Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.


Também a noite é escura.

kinaxixi

Gostava de estar sentado
num banco do kinaxixi
às seis horas duma tarde muito quente
e ficar...
Alguém viria
talvez sentar-se
sentar-se ao meu lado
E veria as faces negras da gente
a subir a calçada
vagarosamente
exprimindo ausência no kimbundu mestiço
das conversas
Veria os passos fatigados
dos servos de pais também servos
buscando aqui amor ali glória
além uma embriagues em cada álcool
Nem felicidade nem ódio
Depois do sol posto
acenderiam as luzes
e eu
iria sem rumo
a pensar que a nossa vida é simples afinal
demasiado simples
para quem está cansado e precisa de marchar.

Fogo e ritmo

Sons de grilhetas nas estradas
cantos de pássaros
sob a verdura úmida das florestas
frescura na sinfonia adocicada
dos coqueirais
fogo
fogo no capim
fogo sobre o quente das chapas do Cayatte.
Caminhos largos
cheios de gente cheios de gente
em êxodo de toda a parte
caminhos largos para os horizontes fechados
mas caminhos
caminhos abertos por cima
da impossibilidade dos braços.
Fogueiras
dança
tamtam
ritmo

Ritmo na luz
ritmo na cor
ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas descarnadas
Mas ritmo
ritmo.

Ó vozes dolorosas de África!

Poesia Africana

Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas


Poesia africana


Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha dos olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa


No céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas


Poesia africana


E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone


Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.

Aspiração

Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas


Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar


ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos


Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida


E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado


Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco


Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo


Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer


E nas sanzalas
nas casas
no subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda


O meu desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.

Contratados

Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rápidos


Sobre o dorso
levam pesadas cargas


Vão
olhares longínquos
corações medrosos
braços fortes
sorrisos profundos como águas profundas


Largos meses os separam dos seus
e vão cheios de saudades
e de receio
mas cantam


Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam


Cheios de injustiças
calados no imo das suas almas
e cantam


Com gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam


Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes


Ah!
eles cantam...

Mussunda amigo

Para aqui estou eu
Mussunda amigo
Para aqui estou eu


Contigo
Com a firme vitória da tua alegria
e da tua consciência


O ió kalunga ua mu bangele!
O ió kalunga ua mu bangele-lé-leleé...


Lembras-te?


Da tristeza daqueles tempos
em que íamos
comprar mangas
e lastimar o destino
das mulheres da Funda
dos nossos cantos de lamento
dos nossos desesperos
e das nuvens dos nossos olhos
Lembras-te?


Para aqui estou eu
Mussunda amigo


A vida a ti a devo
à mesma dedicação ao mesmo amor
com que me salvaste do abraço
da jibóia


à tua força
que transforma os destinos dos homens


A ti Mussunda amigo
a ti devo a vida


E escrevo versos que não entendes
compreendes a minha angústia?


Para aqui estou eu
Mussunda amigo
escrevendo versos que tu não entendes


Não era isto
o que nós queríamos, bem sei


Mas no espírito e na inteligência
nós somos!


Nós somos
Mussunda amigo
Nós somos


Inseparáveis
e caminhando ainda para o nosso sonho


No meu caminho
e no teu caminho
os corações batem ritmos
de noites fogueirentas
os pés dançam sobre palcos
de místicas tropicais
Os sons não se apagam dos ouvidos


O ió kalunga ua mu bangele...


Nós somos!

Voz do sangue

Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue


Ó negro esfarrapado do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South


Ó negro de África


negros de todo o mundo


eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.


Eu vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo


Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.

Quitandeira

A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.


- Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!


A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.


A quitandeira
que vende fruta
vende-se.


- Minha senhora
laranja, laranjinha boa!


Compra laranja doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.


Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.


Laranja, minha senhora!


Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.


E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.


Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.


Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.


Tudo tenho dado.


Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.


Agora vendo-me eu própria.
- Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
- sangue.


Talvez vendendo-me
eu me possua.


- Compra laranjas!

Noite

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.


Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.


São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.


Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.


Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.


Também a noite é escura.